| Há 2.600 anos era construída em Roma a denominada cloaca maxima (maior
 esgoto), sistema de coleta de dejetos, com a escavação de longos túneis
 por baixo da cidade, que ainda não tinha grandes dimensões. Em 312 
a.C., no período da República, foi edificado o primeiro aqueduto na 
cidade eterna, Acqua Appia, seguido de dez outros, ao longo dos séculos 
seguintes, alguns com extensão de mais de 90 km, que traziam água 
potável para a cidade (Tito Lívio, História de Roma – ab urbe condita 
libri, São Paulo: Paumape Editora). No período do Império (27 a.C. até 
476 d.C.), que abarcava grandes extensões da Europa, norte da África e 
Oriente Médio, a maior parte das cidades possuía rede de água e muitas 
delas eram dotadas de sistema de esgoto. Pois bem, passados mais de 26 
séculos, metade da população brasileira não tem acesso a esgoto tratado e
 basta caminharmos pelas vias da periferia de qualquer cidade do País 
para nos depararmos com esgoto a céu aberto e falta d’água. Se não 
bastasse esse fato, quase 40 milhões de brasileiros não possuem água 
potável e mais de 18 milhões não recebem em seus lares água encanada 
(IBGE, 2019).  A pandemia que estamos a suportar expõe a 
vergonha nacional: 12 milhões de pessoas vivem em favelas (segundo o 
IBGE, aglomerados subnormais), cuja designação, especialmente no meio 
acadêmico, foi banida e substituída por comunidades, eufemismo que não 
altera, mas apenas oculta a realidade de pessoas abandonadas pelo Poder 
Público, que vivem nessa situação desumana, sem endereço, sem as 
condições mínimas para uma vida digna, esquecidas e desprezadas por 
todos, verdadeiros invisíveis que, bem de ver, interessam apenas àqueles
 que, de maneira inescrupulosa, incentivam a propagação de novas 
comunidades, com o único intuito de obtenção de votos. Na
 cidade de São Paulo, a mais rica da América Latina, mais de 2 milhões 
de pessoas habitam em favelas e as autoridades, há décadas, sustentam 
que nada é possível fazer, dado o grande número de indivíduos que ocupam
 essas áreas. A segunda favela mais populosa, Paraisópolis (cidade do 
paraíso, verdadeiro paradoxo), concentra aproximadamente 100 mil 
habitantes, suplantada apenas por Heliópolis (cidade do sol, outra 
contradição), com o dobro dessa população. O programa da Prefeitura de 
São Paulo de urbanização de favelas é pífio e jamais solucionará esse 
grave e vexaminoso problema. Há que se abrir vias de circulação para 
automóveis, numeração adequada de casas (endereços certos), criação de 
edifícios para abrigar os moradores, com redes de água e esgoto, praças,
 escolas, tudo isso com a participação da iniciativa privada. E nada 
disso é impossível. Tornar moradias dignas de habitação é dever de 
todos, especialmente do Estado, que pouco faz para alterar essa situação
 aviltante e cruel.  Da mesma forma, é inadmissível e jamais seria um 
direito dos integrantes das favelas a perpetuação dessa situação, pois 
não se trata de escolha, mas necessidade de mudança para uma vida 
melhor, nos exatos termos do que determina a nossa legislação.   Não existe e jamais existiu vontade política para essa tarefa, 
que é tida como impraticável e que, em verdade, pouco interessa às 
autoridades constituídas. Dispensar centenas de funcionários contratados
 sem concurso público, que pouco ou nada fazem nos municípios, milhares 
deles nos Estados e na União, poderia, num esforço conjunto, em âmbito 
nacional, em um ou dois decênios, solucionar, ou, ao menos, melhorar a 
vida de milhões de desamparados, entre outras iniciativas, tais como 
destinar as receitas não mais para obras supérfluas, normalmente 
superfaturadas, mas para o benefício direto das pessoas menos (ou nada) 
favorecidas. Com um sistema de saneamento básico adequado, menos doentes
 ingressariam nos hospitais públicos, com efetiva redução de despesas na
 saúde pública. No rol das prioridades nacionais, saneamento básico e 
“desfavelização” foram relegados ao esquecimento, com consequências 
nefastas em tempos de pandemia. Esse gravíssimo e 
lamentável problema social depende da boa vontade e do real interesse de
 nossos governantes para uma ação concreta. Todavia, até quando devemos 
esperar, enquanto milhões de pessoas vivem de maneira indigna? O Poder 
Executivo se vale constantemente da alegação do que se denomina reserva 
do possível, ou seja, a falta de verbas para solucionar a vasta gama de 
problemas de infraestrutura, o que o impediria de propiciar aos 
favelados uma vida melhor. Outro argumento bastante utilizado é o de que
 caberia apenas ao Executivo a destinação do orçamento, em conjunto com o
 Legislativo, sem qualquer interferência externa. O 
direito à moradia encontra-se na Constituição Federal entre um dos 
direitos sociais (art. 6º), integra o rol dos direitos fundamentais e 
tem aplicação imediata (§ 1º do art. 5º), o que o torna não apenas uma 
opção da administração pública, mas uma exigência constitucional. Em 
verdade, o que se determina é que todo o esforço seja realizado para que
 as pessoas vivam em moradias dignas, adequadas, o que tem sido 
desrespeito há década.  Embora o Ministério Público tenha
 se valido do texto constitucional e pleiteado dos nossos governantes o 
direito à moradia como uma prioridade, nossos tribunais têm decidido que
 seria uma intervenção inadequada do Poder Judiciário no Executivo. 
Contudo, novas e constantes tentativas devem ser realizadas, sob pena 
desse direito a uma moradia digna se tornar letra morta, em detrimento 
de milhões de desassistidos. A covid 19, que atinge maior
 número de pessoas nas regiões pobres, apenas expôs a mazela nacional 
das favelas, existentes desde o final do século XIX e que ainda se 
multiplicam, amparadas por indiferença da população e interesses 
escusos. Anormais não são as aglomerações, como estabelece o IBGE, mas 
as mentes sórdidas e desumanas de pessoas (governantes e governados) 
insensíveis, interessados apenas na próxima eleição, sem um mínimo de 
altruísmo. 
  ROGÉRIO DONNINI, advogado, parecerista e professor do Mestrado e Doutorado da PUC-SP.
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